28 de novembro de 2017

Repensar o Comunismo - Entrevista com Michael Hardt

PF: Em conjunto com Antonio Negri você defende, no livro “Commonwealth”, a ideia de que o capitalismo está em um processo de mudança. E que central, nesse contexto, é a hegemonia do trabalho imaterial.

Michael Hardt: Somos da opinião de que a produção industrial perdeu o seu papel na economia capitalista. Isso não quer dizer, naturalmente, que a indústria não seria mais importante ou que menos trabalhadores seriam empregados na indústria. Ao invés disso, acreditamos que nos últimos cento e cinquenta anos a indústria exerceu hegemonia sobre as outras formas de produção, que foram obrigadas a adotar a jornada de trabalho, as relações salariais e os métodos disciplinares. Essa hegemonia está se dissolvendo. Isso é relativamente incontroverso. Mas nós acrescentamos a controversa hipótese de que a hegemonia agora provém, ao invés da indústria, de formas de produção que se concentram sobre bens imateriais ou bens com fortes componentes imateriais, tais como a produção de ideias, conhecimento, informação, códigos, imagens, linguagens, afetos e assim por diante. Pensamos, por exemplo, no setor de saúde, em professores, produtores de software, produtores culturais e no setor de serviços. Em cada uma dessas áreas os trabalhadores também fornecem bens materiais, mas o resultado do seu trabalho é pelo menos em parte imaterial: uma ideia, uma sensação de bem-estar, uma relação social, etc. Nossa pretensão não é dizer que os trabalhadores de hoje produzem, majoritariamente, bens imateriais, mas que o trabalho imaterial se torna hegemônico do ponto de vista qualitativo e que ele transforma outras áreas da produção. Mesmo a produção industrial precisa, hoje, funcionar baseada em informação e comunicação. Algumas pessoas vão contra essa hipótese, defendendo que o valor real das coisas provém apenas da indústria, na forma de bens materiais reais, que se pode calcular quando eles deixam a linha de montagem da fábrica. Eles dizem que bens imateriais, como ideias, imagens, relações sociais e afetos não teriam qualquer valor econômico. Eles lamentam que a Europa não produz mais e que toda produção agora se encontra na China. Bem, lembremo-nos de que os fisiocratas do século XVIII afirmavam que todos os valores econômicos provinham da agricultura. A economia política insistia, contra isso, que a economia vivenciava uma transformação na qual a manufatura e a indústria tornavam-se hegemônicas. Eu parto do princípio de que nós atualmente nos encontramos em um momento semelhante de transição.

PF: Na análise que fazem do capitalismo vocês aproveitam, visivelmente, motivos marxistas. Trata-se de forças produtivas e relações de produção. Mas vocês combinam isso com o conceito de biopolítica, de Michel Foucault. Como funciona essa ligação de ideias marxistas e pós-estruturalistas?

Michael Hardt: Considero o conceito foucaultiano de biopolítica útil para a compreensão das novas formas hegemônicas de produção. O conceito de trabalho imaterial pode muito bem conduzir a falsas conclusões, uma vez que o processo de produção abarca tanto o corpo como o espírito, atividades mentais e materiais. Somente os produtos têm um caráter imaterial. Por isso é mais preciso compreender o processo de produção como “biopolítico”, uma vez que com a produção de ideias, afetos, linguagens ou imagens nós reproduzimos, em última análise, formas de vida. Embora muitos nas décadas de 1980 e 1990 tenham considerado teorias pós-estruturalistas e marxismo como opostos, eu acho útil ler autores pós-estruturalistas como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari de modo que eles se movimentem em debates marxistas e com isso forneçam-lhes uma nova direção. Se você olha para os debates marxistas da década de 1970, verifica-se que muitos argumentos do pós-estruturalismo eram bem próximos aos do marxismo heterodoxo da época. Ambos, pós-estruturalistas e marxistas heterodoxos opunham-se ao marxismo ortodoxo.

PF: Em que medida a metamorfose do capitalismo altera as condições para as lutas emancipatórias? Para você e Antônio Negri a “multidão” substitui a classe operária enquanto sujeito revolucionário?

Michael Hardt: Não tenho absolutamente nenhuma necessidade de simplesmente dizer adeus a conceitos tais como classe operária ou proletariado. O que nós precisamos, obviamente, é de uma renovação desses conceitos para as condições atuais. O conceito de “multidão” é útil para nos dar uma nova perspectiva acerca do que “classe” pode significar hoje em dia e como subjetividades revolucionárias são possíveis. Um bom ponto de partida é o que Marx chamou de “composição de classes” (Klassenzusammensetzung). Como as pessoas trabalham hoje e sob que condições? Quais são as linhas de cisão especificamente racistas e de gênero dentro da divisão do trabalho? Tendo como base a composição atual das classes, a organização dos trabalhadores e sua representação, especialmente através de sindicatos, precisa ser repensada. Eles foram desenvolvidos a partir de um paradigma hoje ultrapassado, que considerava os trabalhadores da indústria (especialmente do gênero masculino) como sujeitos primários.

PF: Em “Commonwealth” vocês advogam expressamente contra uma perspectiva socialista e a favor de uma perspectiva comunista. Qual a razão desse passo?

Michael Hardt: O conceito de comunismo foi corrompido, como muitos outros conceitos do nosso vocabulário político, de modo que ele no seu emprego atual diz justamente o contrário do que significa. Ao contrário de abolição do estado, comunismo quer dizer aqui absoluto e permanente controle do estado sobre a sociedade e a economia. Que inversão bizarra! Seria necessário investigar a história de como essa concepção invertida foi elaborada e tornada popular tanto pela propaganda soviética como pelo pensamento anticomunista. Para refundar o comunismo eu e Toni [Negri] sugerimos iniciar com a perspectiva do comum [common]. Isso designa formas de riqueza [wealth] que nós compartilhamos de forma aberta. Por um lado são bens comuns a terra e seus ecossistemas, a água, o ar e o solo, ou pelo menos deveriam ser. Nós compartilhamos todos os benefícios desses elementos e compartilhamos também todas as consequências da crescente degradação ambiental. Por outro lado também são “commons” os resultados da produção imaterial, como ideias, linguagens e afetos. Queremos dizer, com a ideia de “commons”, bens comuns em ambos os aspectos, que não são nem propriedade privada nem propriedade do estado. Os bens comuns são a base para repensar o comunismo.

PF: Você tem outros exemplos de “commons”?

Michael Hardt: As lutas pela propriedade intelectual são um exemplo óbvio. Conhecimento, ideias, informações e linguagens perdem sua capacidade produtiva se são privatizados, e deixam de ser comuns [commons]. E a acumulação capitalista sempre depende disso, de dominá-los como propriedade privada. Os “commons” estão em jogo especialmente nas lutas em torno da propriedade intelectual dos saberes indígenas: o saber dos povos amazônicos sobre o poder de cura de uma casca de árvore específica ou dos agricultores indianos acerca de sementes como pesticidas. Na maioria dos casos a discussão começa com um saber coletivo e comumente compartilhado sendo apropriado por um empreendedor e vendido como propriedade privada. Biopirataria é a palavra frequentemente empregada para o comum, não apenas quando saberes, mas também formas de vida completas nas quais eles estão inseridos, são roubados e privatizados. Além disso, é necessário tratar o ecossistema e a terra como bem comum. Nós compartilhamos, obviamente, os impactos da degradação ambiental e do aquecimento global. Nós devemos procurar por soluções que realizem a nossa interação com o meio ambiente na forma do comum. Parecem-me fracassadas aquelas soluções as quais consideram o meio ambiente seja como propriedade pública, e por isso acabam em propriedade do estado, ou as que o veem como propriedade privada e conduzem a novas e fictícias construções, como o comércio de emissões. Nós precisamos de instituições do comum, para organizar os bens comuns.

PF: Vocês são otimistas: a transformação do capitalismo cria novos potenciais para a luta emancipatória e os novos sujeitos estão em última análise melhor preparados para práticas democráticas e subversivas.

Michael Hardt: Eu tenho que confessar que odeio quando as pessoas me descrevem como otimista, quando elas pensam que eu sou tolo e ignoro quão ruim é a nossa situação. Eu admito que coloquei em destaque possibilidades positivas como forma de compensação. Quantas vezes ouvimos que as forças da exploração, da guerra e da morte que estão contra nós são insuperáveis? Como Slavoj Zizek e Frederic Jameson frequentemente dizem: ao assistir filmes de Hollywood é muito mais fácil conseguir imaginar o fim do mundo que o fim do regime capitalista. Em tal situação de partida não é uma má ideia concentrar-se sobre as forças que nós realmente temos e sondar qual tipo de libertação nós podemos tornar possível.

PF: Outra consequência é, portanto, a necessária mudança das contra estratégias políticas. Em “Commonwealth” vocês advogam a favor de uma “revolução como instituição”. O que se deve compreender com isso?

Michael Hardt: Toni e eu apontamos a necessidade de instituições, uma vez que esse era um ponto de conflito central nos movimentos sociais dos últimos anos. A espontaneidade da rebelião e da revolta precisa, naturalmente, ser organizada. Por instituições queremos dizer menos estruturas burocráticas do que algo que se aproxima da definição sociológica de instituições: um conjunto estável de hábitos e relações sociais. As estruturas sindicais que nós herdamos precisam ser repensadas sob essa perspectiva e precisam ser adaptadas às novas condições, assim como as estruturas partidárias. Nós precisamos reavaliar a efetividade e atratividade das formas de organização política existentes e talvez inventar novas formas.

PF: Como você sabe nossa revista também está ocupada com o novo partido de esquerda na Alemanha. Qual poderia ser a contribuição de “Commomwealth” aqui?

Michael Hardt: É difícil avaliar as próprias contribuições. Na maioria das vezes eu rejeito este tipo de pergunta por modéstia ou distância. Ao menos eu diria que “Commonwealth”, em conjunto com nossos livros Império e Multidão, inaugura a possibilidade de iniciar não apenas discussões produtivas sobre formas contemporâneas de exploração econômica, dominação dentro do sistema global e do aparente estado permanente de guerra, mas também de experimentar novas formas de rebelião, organização política e alternativas sociais. Frequentemente o debate e a formação de teorias de esquerda se degradam unicamente em uma questão de crítica. Os analistas de esquerda parecem, frequentemente, concorrer em torno de quem realiza a crítica mais elegante ou mais devastadora da cultura da mercadoria, dos filmes de Hollywood ou da política de marca. Apenas criticar o tempo todo faz a esquerda „sour and dour“. Nos nossos livros não falta a pretensão crítica, mas nós também fornecemos considerações que sugerem novos enfoques para o reconhecimento de novas e poderosas subjetividades e para a criação de alternativas sociais. Você pode eventualmente não concordar conosco, mas nós fornecemos argumentos sólidos, que podem ser debatidos. Isso é algo de que eu sou muito orgulhoso.

Kommunismus neu denken. Michael Hardt über immaterielle Arbeit. Prager Frühling: Magazin für Freiheit und Sozialismus, N° 8, Outubro de 2010. Entrevista concedida a Kolja Möller.